Saca esses períodos longos de noites bestas? Pois é, numa dessas noites escrevi a parte 2 desse conto abaixo, acho que tava em primeira pessoa, não me lembro, até postei no antigo blog e blá blá blá... numa outra noite besta escrevi a primeira parte, aí pintou um concurso literário aí, eu num tinha nada inédito no momento, foi aí que me pareceu uma boa combinação, fiz as devidas mudanças e o negócio se tornou um conto, enviei pro concurso. É claro num ganhei.
Num dá pra apagar os riscos dum disco furado
1
Amassou a folha recém datilografada depois que ela saiu.
Botou a agulha sem muito cuidado no disco rodando, depois de se servir duma dose de conhaque e afundou na poltrona. Os primeiros acordes tão conhecidos daquele sax-alto soaram como que inesperados em algum lugar bem íntimo dentro dele. Fechou os olhos e deu um gole, um pequeno gole e ela tava ali, como sempre, reclamando do seu gosto musical ultrapassado, assim como os seus poucos móveis e seus livros e seu vocabulário e suas roupas, sua máquina de escrever enferrujada, seus problemas com a bebida. Abriu os olhos e deu mais um gole, dessa vez dos grandes. “Há algo de muito errado com você cara, cê vai morrer sozinho, cê vai ser enterrado como indigente, sem que haja alguém pra acender uma vela pela sua alma miserável, sua alma vai ficar vagando por aí, pela eternidade, atrás de bebidas e desses jazz esquisitos, sem nunca encontrar a paz, – repetia ela, pela centésima vez, garota cruel – Há algo de muito errado com você cara. Tá certo, errar é humano, assim como tentar não repetir as mesmas cagadas, mas cê num faz questão disso né?
O disco furado enroscou no mesmo lugar de sempre e aquele riff que nunca se completa ficou ali, ecoando ébrio. Alcançou a garrafa e serviu-se de mais uma dose.
2
"Cê tava escrevendo?" - foi a primeira coisa que ela perguntou.
Não. Ele tava mesmo era cochilando, afundado na poltrona, a garrafa com meia dose sobre o peito, quando ela bateu na porta.
Se sentiu no direito e foi entrando depois de beijar-lhe o rosto, mesmo sabendo, que um beijo no rosto numa situação daquelas era pior que a maior das indiferenças, mesmo assim beijou-o no rosto, olhou em volta, acendeu um cigarro, depois de retirar a agulha do disco ainda rodando, o silêncio fez-se constrangedor.
Ficou parado olhando pro corredor vazio. Ela tinha a manha de deixá-lo assim, desarmado. Sentindo ainda o beijo fresco na bochecha, fechou a porta e se atirou em direção à rua. Talvez tenha sido um erro. Tava frio pra caralho e ele feito um babaca andando sem rumo, sem agasalho ou moedas no bolso.
“Garota cruel, nunca mais faça isso, nunca mais me beije a face. Você num foi? Então fica por lá, seja lá onde "lá" for. Num aparece mais não, não venha com seu cinismo e seus beijos molhados na minha barba por fazer, me deixa em paz.” É o que queria ter dito, de qualquer forma seria um erro, ela não era do tipo que se importa com sentimentos alheios. Garota cruel. Mesmo que ele gritasse palavras obscenas que a chamassem de vaca egoísta, puta ou qualquer merda do tipo, de nada adiantaria, um erro ainda maior.
Dos erros, o menor. Voltou tarde, encontrou a porta aberta e ela dormindo toda torta na poltrona, a garrafa vazia no chão, o mesmo riff ébrio ecoando, ficou um tempo ali, sacando a cena, não havia crueldade alguma em seu rosto e a trilha era perfeita.
Beijou sua boca e a levou pra cama.
Esse não é um tipo de conto que ganha concursos, mas pode crer que me deixou emocionada.
ResponderExcluirum beijo
Débora V
valeu Débora V
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