quinta-feira, 1 de março de 2012

Carinhas que desde muito cedo...

..entendem de que lado da calçada devem andar, mesmo que o outro às vezes pareça tão atrativo, eles sabem exatamente qual o lugar ocupam no mundo.

Fazia oito meses que eu tava ali, de volta, depois de um ano, nove anos depois de ter pisado ali pela primeira vez. Tava caindo fora. Eles tinham marcado uma festa, uma espécie de festa de despedida pra mim, é claro que num me sinto a vontade com esse tipo de coisa, mas a parada seria bem mais como a ultima vez que beberíamos juntos, pelos próximos meses, e tocaríamos canções que por algum motivo tornaram-se clássicas pra cada um de nós, velhos blues e rock and rolls que mudaram nossas vidas. Pode crê, a gente mudou pra caralho, é estranho isso de ter trinta anos e ter a certeza que há dez anos atrás tudo era radicalmente diferente, como que um velho relembrando seus tempos de infância. Passamos juntos uma cacetada de coisas, das mais bacanas às mais satânicas, foda. A gente não escolheu sermos amigos, a coisa só foi acontecendo sem paradas pra descançar ou prum rápido lanchinho que seja, porra nenhuma, era um minuto após o outro, cada dia era uma merda ou uma paixão diferente, à mil por hora a gente seguia inventando formas de mandar a merda tudo que viesse a nos desagradar. Quase tudo nos desagradava, a gente gostava de coisas bacanas, pô. De modo que essa ultima bebedeira juntos, seria especial, mas eu não ia ficar pra ver. Eu era uma decepção, quase uma resignação, algo como “foda-se, esse cuzão é assim mesmo, vamô beber de qualquer jeito, vâmo beber por ele também”, caralho, tô falando dos meus amigos, eles sabiam que era uma puta babaquice da minha parte esse negócio de não esperar mais um dia, pra beber com todo mundo por perto, todos de uma só vez, além de ser a noite de lançamento do livro de um grande brother que eu ajudei a editar e até escrevi a orelha. Eles não entendiam, mas respeitavam minha babaquice, só uma ou duas garotas não fizeram questão de entender, parece que uma delas ficou um bocado magoada. Eu sou um babaca. Já tinha até comprado a passagem.

Carinhas que desde muito cedo já sacam que entre o sagrado e profano existe um buraco tão fundo e escuro como suas almas. Mas nada disso faz a menor diferença. Eles sabem que tem tanta coisa no mundo.

De volta ao velho ônibus oito meses depois, é claro que eu já não era mais o mesmo, eu num era mais nem o ultimo fio de sombra do que eu era oito meses antes, qualquer coisa nos meus olhos refletidos no pequeno espelho vagabundo de frente praquela bacia sanitária química, me dizia isso, eu havia mudado. Me masturbei imaginando como tava sendo a ultima bebedeira dos amigos e pensei nas duas garotas magoadas, demorei pra gozar, mas por fim relaxei, voltei pro meu acento e saquei a garrafa de whisky da mochila, eu não era louco de tentar fazer uma viajem daquelas sem uns tragos pra amainar a ansiedade.

Carinhas que desde muito cedo fazem da persistência suas maiores qualidades. E seus piores defeitos.

Eu tava voltando por ela, quer dizer, isso é o que eu queria acreditar, mas na real sempre soube que eu só tava me acovardando em companhia dos meus amigos, eu tinha o mundo todo pela frente, era a chance de por em prática aquela viajem de carona de norte a sul do globo, esquecer tudo, conhecer tudo. É claro que num ia fazer nada disso. Fui pro único lugar que eu conhecia, voltei a cidade que desprezava, uma cidade maldita, de pessoas malditas, mas com exceções tão raras que valia a pena. Ali, em companhia deles, o tempo parava pr`eu descansar um pouco. Todo mundo sabia que eu não ia ficar ali pra sempre, tava só tentando reconquistar qualquer coisa parecida com auto-estima, eu era um trapo fudido deixado num canto imundo pra baratas passarem e cagarem de nojo, pra ratos mijarem suas doenças de esgoto, ia ser necessário beber muito ao lado deles, foi o que eu fiz. Deu resultado, eu continuava sendo um perdedor fudido, mas isso já não fazia a menor diferença, eu já era capaz de percorrer o caminho de volta.

Carinhas que desde muito cedo roteirizavam cenas perfeitas em velhas polaróides imaginarias, e mantinham seguros seus calendários na carteira e um casamento em baixo do colchão.

O nosso lance foi bancana. O mundo parecia um lugar bacana pra se viver, algo parecido com paz.Tesão e paz. Um caso beat-semi-hippie o nosso. As conversas sem virgula madrugada a dentro, as formas mais loucas de se fazer a cabeça, as trepadas no sofá, na cozinha, na chuva, na rua. A camaradagem, principalmente a camaradagem, éramos tipo irmãos incestuosos, éramos amigos e tínhamos como sagrado o valor da amizade. Éramos.

Carinhas que desde muito cedo criavam heróis derrotados, que nunca saiam com a vagabunda mais cobiçada do colégio, nem conseguiam sequer um olhar de ternura daquela pequena encantadora da rua de baixo, mas continuavam desejando-a e fazendo micagens.

Era seu aniversário, até a meia noite ainda era seu aniversário, era imprescindível encontrá-la antes, do contrário, teria ficado bebendo com meus amigos e nenhuma garota taria magoada comigo. Eu sou o melhor, quando o assunto é babaquice. Eu não acreditava que algo fosse mudar, só por uma demonstração babaca de que eu era capaz de lembrar a porra duma data específica. Num tava bancando o romântico, num tava ali pra conquistar, reconquistar ou qualquer merda do tipo, eu só queria dá um abraço nela, eu nunca gostei, mas ela curte essa coisa de aniversário.

Carinhas que desde muito cedo já flertavam com esperanças forjadas em sarjetas de pinga com refrigerante, carinhas que vomitavam uns nos outros pra em seguida beber de novo. Carinhas que leram livros demais.

Cheguei às dez, bêbado feito um porco, tinha duas horas pra encontrá-la entre nove milhões de pessoas, sabia que seu prédio ficava em frente a um salão de cabeleireiro lilás,  já era alguma coisa, minha mochila já nem parecia tão pesada assim.

4 comentários:

  1. Puta texto, Kleber. Há uma melancolia sincera pra burro nele.

    E, não tem muita solução pra amargura da vida, mas sempre haverá carinhas que desde muito cedo sabem que são alguns livros que nós mantêm por aqui e algumas doses que calibram nossa sanidade, como o próprio Bukowski já disse sobre um bom trago: "Quando bebo, o mundo continua a existir lá fora, mas pelo menos ele tira as mãos do meu pescoço".

    Abraços, cara.

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  2. pode cre Edy, talvez nao haja solução mesmo, mas temos nossas estratégias de fuga. valeu man, abraço

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  3. dahora em birigui...abraço

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